Em 1905, Marcel Proust, sob o pretexto de escrever o prefácio a sua tradução de um livro (Sésame et les Lys, na versão francesa) do poeta e crítico de arte britânico John Ruskin, acabou por fazer um dos mais bonitos e certeiros elogios da leitura enquanto fonte de enriquecimento do espírito – desde que encarada como porta de acesso a um conhecimento (ou melhor ainda, autoconhecimento) e não como transmissão deste conhecimento. São 62 breves páginas e intitula-se, didaticamente, Sur la lecture (verifiquei agora na internet: está traduzido no Brasil pela editora Pontes, Sobre a leitura).
Bem ao estilo do narrador/autor de Em busca do tempo perdido, servindo-se de uma longa série de evocações da infância, de recordações de momentos especiais de prazer ligado à leitura, de descrições extremamente sensuais do ambiente e de tudo o que o cercava quando, fosse em seu quarto ou na sala de estar da casa de campo da família, fosse ao pé da lareira numa tarde fria de inverno ou em mangas de camisa sob uma cerejeira depois do almoço, ou bebendo chá de tília e enrolado em mantas le lã, um tanto febril por causa de um resfriado, ou ainda estirado na grama a ouvir o riacho correr entre as pedras e os pássaros nos galhos das árvores, ele, o jovem leitor que era Proust (mas que poderia ser qualquer outro) via-se tomado de encantamento pela leitura de um livro.
Através deste desfile de reminiscências, Proust introduz a ideia de que a marca que as leituras, sobretudo as da infância e já bem distantes no tempo, deixam no leitor está mais (ou tanto quanto) ligada às circunstâncias em que elas se deram – a imagem dos lugares, dos dias, as sensações experimentadas, etc – do que propriamente dos livros de onde elas emergiram. Ou seja, o foco está no eu, no sujeito, não no objeto.
No texto, Proust contesta a tese defendida por Ruskin – tese que, segundo ele, Proust, provém de Descartes – que diz mais ou menos o seguinte: a leitura de todos os bons livros seria como uma espécie de conversa com as melhores e mais honestas pessoas do passado, que são precisamente os autores destes (bons) livros.
Para Proust a leitura não é nada disso. Ela não pode ser comparada a uma conversa, mesmo se fosse com o mais inteligente dos homens. O que diferencia um livro de uma pessoa (um autor) não é a maior ou menor fonte de inteligência com a qual nos poremos em contato, mas sim a maneira, o meio através do qual se dá este contato. Na leitura, assim como em uma conversa, nós comunicamos, certo, com outro pensamento. Mas à diferença desta última, permanecemos a sós conosco, ou seja, «continuamos a gozar do poder intelectual que temos na solidão e que a conversa dissipa imediatamente, continuamos a poder sermos inspirados, continuamos em pleno trabalho fecundo do espírito sobre ele próprio».
Esta ideia é interessante porque aponta para o caráter ativo que, para ser de fato enriquecedora, toda leitura deve incorporar. E nisso ajuda a aproximar o ato de ler ao de escrever.
A leitura como um encontro consigo próprio. Assim como é a escrita. A solidão do leitor, em certa medida se assemelha à solidão do escritor, cortados do mundo real, imersos no contramundo de suas imaginações, de seus pensamentos.
Uma frase escrita representa todo um caminho percorrido pelo pensamento do escritor que, de posse de sua arte, conseguiu expressá-lo daquela forma. Esta mesma frase lida é o início de uma operação mental de parte do leitor que, fazendo uso de sua sensibilidade e de sua carga de experiências pessoais, também produz (novas) imagens e ideias.
No dizer de Proust o caráter daquilo que para o escritor seria uma "conclusão", para o leitor seria "incitação". Ou seja, a sabedoria do leitor começa quando a do autor termina e por mais que aquele queira que este lhe traga respostas, o máximo que um escritor pode fazer por um leitor é despertar-lhe desejos.
Desejos estes que nascem no contato com a obra, na contemplação do resultado estético que o esforço da arte do escritor permitiu-lhe atingir. Quantas vezes chegamos ao fim de um livro querendo mais, com pesar por ele ter acabado ali. É como se a ponta de um véu ("o véu da feiúra e da insignificância que nos deixa negligentes diante do universo") que nos impedisse de ver algo fosse levantada. Mas só a ponta. E para retirá-lo completamente já não há mais ninguém. Ou melhor, ninguém mais poderá fazê-lo por nós. É necessário que, sozinhos, continuemos o trabalho. Até porque os olhos são nossos e só nós poderemos ver o que está por trás do véu. Se forem outros os olhos, outras serão as visões.
Se uma verdade existe e é possível, nós não podemos esperar recebê-la de ninguém, mas devemos criá-la nós mesmos, no interior de nós mesmos. Acho que isto resume bem o poder da leitura – a sua importância e também a sua limitação, como diz Proust: para ser salutar a leitura deve ser uma ferramenta para o desenvolvimento interior da pessoa, mas poderá até se tornar perigosa se em vez de despertar o indivíduo para a vida espiritual ela passar a ser para ele o substituto desta vida, ou seja, se em vez de encararmos a resposta às nossas questões como uma espécie de verdade idealizada só alcançável através do progresso íntimo de nosso pensamento nós encararmos esta verdade como algo pronto, rígido, "uma coisa material disposta entre as folhas dos livros como um mel preparado pelos outros, bastando-nos espichar a mão até a prateleira para degustá-lo passivamente num total repouso do corpo e do espírito".
A verdade que interessa não está nos livros. Mas pode estar. Depende do leitor.