Quantcast
Channel: Blog do Amilcar Bettega
Viewing all articles
Browse latest Browse all 5

Publicar livros

$
0
0

O ano é o de 1994 e eu vivo há cerca de seis meses em Três Passos, uma pequena cidade de uns 20.ooo habitantes no norte do Rio Grande do Sul, aonde eu tinha sido designado para assumir minhas funções no Banco do Brasil após ter prestado concurso público.

Eu estou na estação rodoviária de Três Passos e aguardo com uma ansiedade não de todo desagradável a chegada do ônibus que vem de Porto Alegre. Quando o ônibus enfim estaciona (teria desejado que ele demorasse um pouco mais para prolongar o prazer da espera) eu me aproximo. Aguardo a descida dos passageiros. Não é uma pessoa que eu espero, mas um pacote. Apanho-o com o funcionário da empresa após este ter cotejado os papéis da expedição com a cédula de identidade que lhe apresento. Com o pacote sob o braço, dirijo-me ao meu automóvel. Sento-me na poltrona do condutor, ponho o pacote no banco ao lado. As portas do carro estão fechadas, as janelas levantadas, isto ajuda a me fazer sentir quase como se estivesse sozinho em casa e na mais completa privacidade. Só então olho para o pacote a fim de reparar em seus detalhes. Tem uns 30 centímetros por 20, e uns 7 de altura. Está enrolado em papel pardo com fita adesiva (em excesso) para fechar as extremidades. O meu nome e endereço estão impressos em uma etiqueta branca que foi colada sobre o papel. Há o carimbo dos correios, agência Av. Independência.

Faz um pouco de calor no interior do carro, mas eu nem cogito baixar os vidros. É um final de tarde de agosto, quase setembro, e acho que não erro ao situar a hora nesta fatia de minutos compreendida entre as 17h15 e 17h45. O sol começa a descer e o horizonte, sempre ao alcance dos olhos naquela região em que o urbano nunca é muito mais do que um rural povoado, torna-se vivamente alaranjado para os lados do oeste. Tenho as mãos frias e um pouco trêmulas, o que é um clichê de linguagem mas a pura verdade. Abro o pacote, procurando descolar a fita adesiva sem rasgar o papel, segundo um hábito que data já nem sei de quando, mesmo que depois, invariavelmente, eu sempre jogue o papel ao lixo.

O conteúdo finalmente se mostra. Trata-se de vinte exemplares de um livro cuja capa tem fundo azul e o desenho (um tanto primário; a capa é feia) de um trapézio vazio em movimento. É o meu livro, meu primeiro livro, intitulado “O voo da trapezista”, que dois dias antes saíra da gráfica em Porto Alegre. O IEL – Instituto Estadual do Livro – responsável pela edição, em conjunto com a editora Movimento, enviava-me aqueles exemplares em primeira mão.

                                                           

 A emoção e a alegria que experimentei ao segurar um daqueles magros exemplares (o livro tem menos de 100 páginas) e passar a mão em sua capa como quem acaricia a cabeça de um filho, foram das maiores da minha vida. Raras vezes me senti tão feliz quanto naquele momento.

Para um escritor, ver o seu livro acabado – do ponto de vista gráfico, eu digo – e pronto para chegar às mãos do leitor é uma experiência extraordinária. E se este livro for o seu primeiro, então é algo do qual ele nunca mais esquecerá. Como a primeira vez que se faz amor, o primeiro beijo, essas coisas.

Mas além do prazer, há o frio na barriga (o que aliás contribui para a sensação de prazer). Porque publicar é sempre uma experiência inquietante, e de alguma arrogância também. São sensações e posturas ambíguas, aparentemente contraditórias, mas indissociáveis do fato de trazer a público o que era do domínio do íntimo.

Mas não há como fugir. Na literatura, quem escreve, mesmo o escritor iniciante que ainda nunca publicou, escreve com a perspectiva da publicação. Escreve-se sempre para que alguém leia, até porque um dos fundamentos da literatura reza que ela só se completa de fato no momento da leitura, ou seja, sem leitor não há literatura.

Assim, toda escrita pressupõe uma leitura, e esta leitura só se dá num domínio que não é o do privado (que é o domínio da escrita). Escrever é, portanto, na sua essência, tornar público – mesmo textos que não serão publicados. Este “tornar público” significa fazer com que algo que tem existência em uma esfera interior – uma ideia, um pensamento, uma emoção, sensação ou seja lá o que o escritor deseje expressar – passe a ter existência (e valor) fora desta esfera, fora do círculo íntimo do autor.

A publicação de um texto é inquietante porque de repente você se vê inapelavelmente posto a nu. Até então, tudo se passava como num diálogo consigo próprio, no interior da sua cabeça. Como se você estivesse sozinho no seu quarto, podendo fazer todas as macaquices que desse na veneta, podendo ser ridículo sem medo do ridículo, a salvo do olhar (e do julgamento) do outro. Mas aí, de repente, o seu quarto ganha paredes de vidro, suas palavras, seus pensamentos, todo o seu interior torna-se público.

Então acontece algo estranho: aquilo que parecia estar muito bem pensado, aquelas frases que pareciam tão consistentes, tudo passa a ser extremamente frágil, e as palavras, antes dando a impressão de sólidos pilares do texto, agora não são mais do que débeis pedidos de socorro, agarrando-se umas às outras num equilíbrio precário. A impressão (reprodução sobre o papel) em páginas de um livro parece fazer com que todas as fraquezas do texto aflorem.

Publicar é expor as suas fragilidades. E tem algo de obsceno nisso, no sentido de que a publicação implica de alguma forma a revelação de uma intimidade. Mesmo na escrita sem nenhum traço autobiográfico aparente, o que está em questão é sempre o escritor. É com a sua visão de mundo, sua sensibilidade e experiência que o texto se constrói. Sempre na relação com o outro e o mundo à sua volta, mas o filtro é o do escritor, de seu universo interior. Escrevemos sobre nós próprios mesmo quando o que escrevemos não têm nada a ver com a nossa vida pessoal.

É aí que reside a arrogância do escritor, de todo escritor: é preciso se ter em muito alta conta para pensar que aquilo que ele escreve, que no fundo trata-se dele próprio, possa ter algum interesse para os outros, para gente que nem o conhece.

Mas será que tem interesse? Sim e não. Não é o escritor, impregado ao texto que ele escreve, que interessa ao leitor, mas o próprio texto, que vai permitir a este leitor se ler ali dentro. Porque também na leitura o foco está no eu, no sujeito e não no objeto. Assim como a escrita, a leitura também é autoreflexiva, na medida em que ela aponta para dentro do leitor, para a sua experiência, o seu mundo, a sua imaginação. Nasce no outro, vem de fora, mas remete aquele que a pratica para a sua vida interior.

Leitura e escrita: sempre uma viagem individual, para dentro, mas que passa pelo espaço público do livro.


Viewing all articles
Browse latest Browse all 5