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Conduzindo

Olhou para o filho que dormia no banco ao lado e pisou o acelerador. O carro foi ganhando velocidade gradualmente na estrada quase deserta. Viajavam há mais de quatro horas, e agora podia dizer que começava a sentir o cansaço. Era inverno, a noite tinha caído de súbito, a calefação produzia um pequeno mas constante zumbido e tornava o interior do automóvel morno e aconchegante.

Pressionou um pouco mais o pé sobre o acelerador e o ponteiro do velocímetro deu um salto, como uma agulha imantada colocada bruscamente diante de um metal. À frente, apenas a escuridão já absoluta da noite, rasgada pela luz dos faróis. A cada curva, a cada declive da estrada, o facho cônico tirava do escuro um pequeno trecho da paisagem com uma lambida amarela do iodo. Árvores, cercas, algumas casas perdidas, tudo ia ficando para trás quase ao mesmo tempo em que eram reveladas pelas sobras de luz que se desgarravam nas laterais da estrada. Ele tentou imaginar e compor um quadro mais amplo do tipo de paisagem que os cercava, mas desistiu ao perceber que era impossível, que estavam numa bolha de escuro e que iam em direção ao centro, perfurando camadas e camadas de escuro em direção ao centro.

Acelerou mais, o motor respondeu ainda com mais força. No interior do automóvel apenas o zumbido e a mornidão aconchegante, um plácido ambiente que lhe trouxe a imagem de repouso, embora soubesse que alguém parado à beira da estrada (se existisse alguém parado à beira da estrada) pouco veria além de um bólido rasgando a noite a cento e quarenta quilômetros por hora. Sentia-se protegido pela escuridão, mas ao mesmo tempo, e cada vez mais, como que engolido por ela. Pisou mais forte o acelerador, o ponteiro foi a cento e sessenta e a noite pareceu transformar-se definitivamente num túnel negro, uma garganta que os engolia com avidez. Já não distinguia bem se eram árvores, cercas ou algumas casas perdidas o que passava ao lado, nas babas da luz. Tinha os olhos vidrados na grande língua de asfalto por onde os pneus deslizavam. Sabia que atingira a velocidade em que a partir dali já não tinha mais nenhum controle sobre o automóvel, e por isso pressionou ainda com mais força o pé sobre o acelerador. Qualquer pedregulho no meio da estrada, algum animal insone que resolvesse atravessá-la, atraído ou assustado pelo ruído ou pelos faróis, algum pássaro noturno, um pneu que estourasse, qualquer coisa, àquela velocidade, seria tudo.

Mas o interior do carro estava morno e aconchegante, e à sua frente abria-se a garganta escura da noite, e talvez árvores, talvez cercas, talvez algumas casas perdidas passavam ao seu lado sem que ele pudesse identificá-las, porque agora pisava o acelerador até o fundo e continuava forçando o pé contra a parede de metal do assoalho do carro, ainda que o ponteiro do velocímetro batesse no máximo, ainda que sentisse que o automóvel voava sobre o asfalto, ainda que soubesse que qualquer coisa, ali.

Enfim, um ponto amarelo surgiu ao longe, na outra ponta do escuro. E com um toque mínimo, um quase nada sobre o volante, ele trouxe o carro para a pista da esquerda, sem tirar o pé do acelerador. Era uma longa reta, plana, o ponteiro do velocímetro não mexia, grudado no máximo, e crescia o ponto amarelo à sua frente. Crescia rapidamente a luz dos faróis à sua frente. Ela cresceu tão rápido contra seus olhos que foi quase às cegas que ele levou o automóvel outra vez para a pista da direita, e ouviu, não mais do que por frações de segundo, o som de uma buzina crescer e, quase ao mesmo tempo, se perder outra vez atrás de si, no fundo da noite. A estrada continuava reta e plana e escura. O interior do carro era morno e havia o zumbido constante da calefação. Piscou os olhos de maneira lenta, chegou mesmo a fechá-los por um pequeno, infinitesimal instante, porque seu corpo sentia o cansaço, e o ar quente que soprava através das ventoinhas no painel faziam um zumbido constante e deixavam o interior do automóvel morno, morno. Então ele fechou os olhos por esse pequeno instante e só se deu conta de que o fizera quando no instante seguinte estacionava na garagem de sua casa e sua mulher lhe dava um beijo e dizia que esperava-lhes bem mais tarde.

A luz da garagem pareceu-lhe forte demais e agredia seus olhos. Também os ouvidos ele sentia como que agredidos pela voz da mulher que abraçava o filho ainda sonolento e perguntava ao marido se ele estava com fome.


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